De Aracaju/Brasil a Santiago/Chile: o caminho para a constituição do Conselho Latino-Americano da Água – O que foi que ninguém viu?

Por Francisco Lahóz* e Murilo Sant’Anna**

A união das nações latinas para a troca de experiências exitosas de gestão dos recursos hídricos sempre foi um desejo antigo dos stakeholders da água da região, com o objetivo de aperfeiçoar o sistema de gerenciamento da região e proporcionar maior segurança hídrica, com mais investimentos, projetos e obras que melhorem a qualidade e os poderes decisórios sobre as águas. O Conselho Latino-Americano da Água (CLA) se tornou realidade a partir do 1º Fórum Latino realizado, em novembro de 2023, na cidade de Aracaju, capital de Sergipe. Desde então, os atores da gestão de recursos hídricos da América Latina possuem uma plataforma regional para discutir decisões sobre o tema. Mas, o que poucos sabem é que essa movimentação tem início muito antes com eventos e articulações que auxiliaram para a concretização da fundação do Conselho.

AS PRIMEIRAS TENTATIVAS PARA UNIR OS PAÍSES LATINO-AMERICANOS PELA ÁGUA

A “Semana de Debates sobre Recursos Hídricos e Meio Ambiente”, realizada em duas etapas, uma entre os dias 04 e 06 de maio de 1992, na Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiróz (ESALQ/USP), na cidade de Piracicaba (SP), Brasil, e a segunda entre os dias 07 e 08 de maio de 1992, no auditório da FUNDAP (Fundação do Direito Administrativo), em São Paulo (SP), Brasil, é considerada um divisor de águas para o Sistema de Gerenciamento de Recursos Hídricos nacional e da América Latina.

O Seminário, organizado a partir de uma parceria entre o Consórcio Intermunicipal das Bacias dos Rios Piracicaba e Capivari (hoje Consórcio PCJ), Departamento de Águas e Energia Elétrica do Estado de São Paulo (hoje SP Águas) e a FUNDAP, foi em um momento histórico, pois, em dezembro de 1991 havia sido promulgada a Lei 7.663, que estabeleceu normas de orientação à Política Estadual de Recursos Hídricos para o Estado de São Paulo, criando o Fundo Estadual de Recursos Hídricos (FEHIDRO) para dar suporte financeiro ao setor e estabelecendo o processo de planejamento para elaboração, atualização e aprovação  do Plano Estadual dos Recursos Hídricos para o Estado de São Paulo.

A Semana de Debates na etapa de Piracicaba foi prestigiada com o registro das discussões por meio de uma publicação, produzida pelos organizadores do evento, que está disponível na Biblioteca Virtual do Site do Consórcio PCJ (www.agua.org.br), na qual brilham diversos textos de autoria de lideranças do sistema de gerenciamento da época. Um dos artigos que compõe essa publicação é assinado por Eduardo Villate Bonilla, tendo como tema, “A Cuenca Del Rio Bogotá – Colômbia”, no qual o autor compartilha os desafios de gestão daquela bacia hidrográfica, promovendo as bases do espírito de gerenciamento de recursos hídricos latino, que é o da troca de experiências e formas de cooperação.

Outro artigo que se destacou, também, foi o de autoria de Vinícius Fuzeira de Sá e Benevides e Roberto Moreira Coimbra, representando o Departamento Nacional de Águas e Energias Elétrica do Brasil (DNAEE), tendo como título “Gerenciamento de Recursos Hídricos”.

O evento contou ainda com apresentações de boas práticas da Alemanha e França e impulsionou ações focadas nas “Disposições Transitórias” da Política Estadual dos Recursos Hídricos de São Paulo, recém promulgada à época e que levou à criação do Comitê das Bacias dos Rios Piracicaba, Capivari e Jundiaí (Comitês PCJ), em novembro de 1993, marcando a criação do primeiro Comitê de Bacias Hidrográficas do Estado de São Paulo.

Após a “Semana de Debates”, o Consórcio PCJ fortaleceu parcerias em busca da real implementação da Política de Recursos Hídricos. A entidade, fundada como organismo de bacias e associação de usuários de água, priorizou a meta de implementar o sistema de Gerenciamento de Recursos Hídricos, em âmbito estadual e nacional.

Como legado, podemos considerar que o evento deu continuidade ao diálogo entre os países latino-americanos, iniciado na “Semana de Debates”, aproximando a região à França, uma vez que o Consórcio PCJ foi precursor, e o é até hoje, em manter relações diplomáticas com o Sistema Francês de Gerenciamento de Recursos Hídricos.

Esta cooperação entre Consórcio PCJ e França iniciou em 1991, quando a entidade liderou a histórica comitiva que visitou a Europa, de modo particular Alemanha e França, para obter mais experiências sobre o modelo europeu de gerenciamento para auxiliar na compreensão do Projeto de Lei, em tramitação à época e que ao final daquele ano viria ser a Política Estadual dos Recursos Hídricos do Estado de São Paulo (Lei 7663).

A CRIAÇÃO DAS REDES DE ORGANISMOS DE BACIAS

A aproximação com a França aflorou a importância da criação de “Redes de Organismos de Bacias” com o intuito de promover a troca de experiências e estimular a interlocução, primeiramente, de modo interno, com instituições nacionais, e depois de modo externo, envolvendo cooperação internacional entre diferentes países.

Deste modo, ocorreu a criação da Rede Internacional de Organismos de Bacias (RIOB), uma estrutura internacional, instituída em maio de 1994, na França, com a participação de países de todo o mundo, inclusive latino-americanos, empolgados com essa metodologia de interlocução voltada aos recursos hídricos. Atualmente, compõe a RIOB mais de uma centena de organizações de bacias hidrográficas de várias partes do mundo. A Secretaria Executiva da rede é exercida pelo Escritório Internacional da Água (Office de l’Eau), com sede em Paris, capital da França.

Em seguida, houve a fundação da Rede Latino-Americana de Organismos de Bacias (RELOB), em julho de 1997. As particularidades políticas e sociais dos países latinos foram as bases para formação da RELOB que é uma das seções regionais da RIOB.

Inspirada na articulação através de redes, no âmbito brasileiro, tivemos a criação da Rede Brasil de Organismos de Bacias (REBOB), em 1998, na cidade de Piracicaba (SP). Assim como a RELOB, a rede nacional mantém estreito relacionamento com a RIOB.

Ao longo dos anos, a REBOB foi assumindo a liderança de interlocução nacional em Gerenciamento dos Recursos Hídricos, promovendo a sensibilização nacional acerca do tema, utilizando-se para isso, de articulação entre os stakeholders brasileiros, da realização de eventos, da produção de conteúdos por meio de publicações (revista e newsletter) entre outras inúmeras ações. A REBOB também exerce há muitos anos a Secretaria Executiva da RELOB. Em 2013, a REBOB indicou o representante que assumiu a Presidência da RIOB na época, com um mandato marcante e significativo para a gestão da água e cooperação internacional.

A CRIAÇÃO DO CONSELHO LATINO-AMERICANO DA ÁGUA

O Conselho Latino-Americano da Água (CLAA) foi fruto da articulação planejada e assertiva pelos entes do Sistema de Gerenciamento de Recursos Hídricos, capitaneados pela REBOB, através da realização do 1º Fórum Latino-Americano da Água (FLAA), em Aracaju (SE), em 2023. Com o objetivo de unir os stakeholders da região para promover a gestão integrada e compartilhada da água na América Latina, a iniciativa marcou o primeiro passo para a criação de um organismo que conglomerasse entidades, instituições públicas e privadas, envolvendo os países latinos.

Na ocasião, a criação do CLAA foi justificada ainda pela importância que a América Latina possui no mundo da água, uma vez que a região conta com 700 milhões de habitantes ou 9% da população mundial e detém cerca de 30% da água doce do planeta.

Em maio de 2024, durante o 10º Fórum Mundial da Água, na cidade indonésia de Bali, ocorreu a cerimônia de instalação do Conselho com a apresentação do Plano de Ações até 2026 e a assinatura de protocolos de cooperação.

1ª REUNIÃO DE TRABALHO

Após a sua instalação, em Bali, o Conselho Latino promoveu a primeira reunião de trabalho, em agosto de 2024, durante a realização do 1º Fórum Brasil das Águas, que ocorreu em Foz do Iguaçu (PR), Brasil. Na ocasião, aconteceu a Assembleia Constituinte, na qual foi apresentado e aprovado o Estatuto da instituição, além da eleição dos membros para compor a estrutura de funcionamento do Conselho.

Pelo estatuto, o CLAA é composto: pela Assembleia Geral, com todos os membros participantes, o Conselho de Governadores, a Diretoria Executiva, a Secretaria Técnica Permanente e o Conselho Fiscal. O Conselho de Governadores está dividido da seguinte maneira: Colegiado 01, formado por seis membros de Governos Nacionais; Colegiado 02, composto por seis instituições internacionais; Colegiado 03 das empresas, formado por seis representantes do setor privado; Colegiado 04, composto por seis representantes de Associações Técnicas e ONGs (Organizações não governamentais).

Benedito Braga, com vasta experiência em Gestão de Recursos Hídricos e atuação internacional da pauta da água, foi nomeado presidente do Conselho Latino-Americano da Água. Braga presidiu o Conselho Mundial da Água de 2012 a 2018, o mesmo que organiza os Fóruns Mundiais da Água, ocupando, atualmente, a presidência honorária da instituição. Para a Secretaria Técnica permanente do Conselho Latino foi indicado o nome de Lupércio Ziroldo Antônio, atual presidente da Rede Brasil de Organismos de Bacias (REBOB) e Secretário técnico da Rede Latino-Americana de Organismos de Bacias (RELOB). Todos os membros da estrutura do Conselho terão mandato de três anos.

2ª REUNIÃO DE TRABALHO COMEÇA A PERCORRER A AMÉRICA LATINA

A 2ª Reunião de trabalho do CLAA aconteceu em março de 2025, na cidade de Buenos Airtes, capital da Argentina, e marcou o início das reuniões itinerantes da instituição. Nessa mesma ocasião, houve pela primeira vez a reunião com os governadores latinos da água, eleitos em Foz do Iguaçu, no Brasil. Na pauta, decisões importantes e norteadoras para os trabalhos que serão desenvolvidos pelo Conselho nos anos de 2025-2026, como a definição dos temas prioritários das discussões: Segurança Hídrica e Resiliência Hidrológica; Saneamento Rural; Regulação; e Tecnologia e Inovação.

O Conselho, assim, se consolidou como uma plataforma internacional, destinada a fornecer soluções tangíveis para o desafio dos recursos hídricos no território continental da América Latina. Com a condução e presidência de Benedito Braga, a reunião apresentou os desafios para a gestão efetiva da água na América Latina e ainda debateu temas como financiamento e governança, apresentados pelo BID e pela CAF. A reunião teve a participação de várias instituições associadas e a abertura contou com a presença do Presidente do Conselho Mundial da Água, Loïc Fauchon, o vice-ministro de obras públicas do Chile, Sr. Danilo Nuñez, e o subsecretário nacional de recurso hídricos da Argentina, Sr. Bartolomé Heredia.

3ª REUNIÃO DO CONSELHO LATINO APRESENTA RESULTADOS PRELIMINARES

O encontro mais recente do Conselho Latino-Americano da Água aconteceu no dia 06 de outubro de 2025, na cidade de Santiago, Chile, na sede da CEPAL – Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe, uma das cinco comissões regionais das Nações Unidas, durante a Semana Regional da Água.

A reunião mais uma vez foi dirigida pelo Presidente do Conselho, Benedito Braga, com a participação expressiva do Board de Governadores, e teve como pauta principal as primeiras atividades que estão sendo desenvolvido pelos grupos de trabalho de Saneamento Rural, Inovação, Segurança Hídrica e Regulação, no foco das ações que deverão ser desenvolvidas para avanços nestas áreas da gestão efetiva dos recursos hídricos na América Latina.

A reunião e organização, contou com o trabalho da Diretoria do Conselho composta por Lupercio Ziroldo Antonio, pelo Diretor de Relações Institucionais, Filipe Sampaio, e pela Secretaria com Suraya Modaelli e Emanuelle Mares, e teve a participação do Secretário Nacional de Infraestrutura Hídrica, Giuseppe Serra Seca.

O Consórcio PCJ, como membro do Conselho Latino, foi representado na ocasião pelo seu Secretário Executivo, Francisco Lahóz e pelo seu Gerente de Comunicações e Coordenador de Relações Institucionais e Internacionais, Murilo Sant’Ana, que após a apresentação dos Grupos de Trabalho, propuseram como providências futuras do Conselho,  a criação  um Grupo de trabalho intitulado “Água e informação”, para facilitar a elaboração de estratégias e planos de divulgação dos documentos técnicos que estão sendo produzidos. A mesa diretora recebeu a sugestão com simpatia e incluiu em suas reflexões e providências.

Na sequência a Reunião do Conselho a Comitiva dos Conselheiros presentes, se engajaram nas comemorações do Dia Interamericano da Água e da Semana da Água promovida pelo CEPAL. Os representantes Brasileiros da ANA e Ministérios, bem como, de Empresas e Entidades em geral, participaram durante toda a semana de reuniões específicas, painéis e promoções afins, sobre o tema água e suas implicações, promovidas e coordenadas pela CEPAL.

VIDA LONGA AO CONSELHO LATINO-AMERICANO DA ÁGUA

Desde a reunião de implantação do Conselho Latino-Americano, realizada em Aracajú (SE), Brasil, em 2023, ficou evidente nas reflexões finais e deliberação do evento o compromisso em atribuir sustentabilidade e vida longa a este novo Conselho. A REBOB, como sempre, assumiu a condução do processo nesta direção, com o total apoio da Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico do Brasil (ANA), Itaipu Multinacional, ABAR, ABRHidro e inúmeras outras Entidades e Instituições Brasileiras engajadas com o tema.

No encontro da Argentina, houve a sinalização do estabelecimento de contribuição financeira anual para garantia, inicialmente, de uma estrutura mínima para assegurar a implantação do Conselho com continuidade e respostas aos trabalhos empreendidos.

Em Santiago, no Chile, já se verificou os primeiros resultados sendo apresentados pelos grupos de trabalho e uma agenda de atividades envolvendo os temas centrais de atuação, definidos pelo Conselho.

A mensagem que fica sobre “o que foi que ninguém viu”, é o comprometimento entre os atores do gerenciamento de recursos hídricos da América Latina em fortalecer o Conselho nos aspectos: técnico, político e econômico, com sustentabilidade para que a instituição seja a cada ano mais consolidada entre todos os países da região.

Os debates agora caminham para a estruturação dessa sustentabilidade financeira. Um modelo que pode ser seguido seria o da RIOB, grande inspiradora e apoiadora de redes, que possui a Secretaria Executiva sendo exercida pelo Escritório Internacional da Água (Office de l’Eau) e com custeio sendo feito por  várias categorias de associados: alguns como observadores e apoiadores sem realizar participação financeira, outras com contribuições financeiras anuais de menor monta  e outras com apoios mais significativos realizados pelas Agências de Bacias da França e Confederações Hidrográficas da Espanha, entre outras, o que gera sustentabilidade à RIOB e permite que a Rede desenvolva uma série de ações e projetos, espalhados por todo mundo.

Independentemente do modelo que iremos seguir, o que nos enche de alegria e entusiasmo é ver que os Membros do Conselho Latino estão unidos e cientes da necessidade dessa sustentabilidade para o sucesso da instituição, o que já é meio caminho percorrido. Viva a Água da América Latina! Vida longa ao Conselho Latino-Americano da Água!

*Francisco Carlos Castro Lahóz é engenheiro civil formado pela Escola de Engenharia de Piracicaba da Fundação Municipal de Ensino (EEP/FUMEP) e mestre em irrigação e drenagem pela Universidade de São Paulo (USP). No Consórcio PCJ, exerce as funções de coordenador de projetos, gerente técnico e secretário executivo, além de ser membro do Conselho Latino-Americano da Água (CLAA).

 **Murilo Ferreira de Sant’Anna é jornalista formado pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas (PUCCAMP) e mestre em Ciências Ambientais pela Escola de Engenharia de São Carlos da Universidade de São Paulo (EESC/USP). No Consórcio PCJ, exerce a função de gerente de comunicação e é responsável pelo relacionamento com instituições nacionais e internacionais.

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